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Além do Minimalismo

Entre 2006 e 2008 eu mergulhei no minimalismo.

Foi uma experiência importante para a época. Eu buscava a essência das coisas e acreditava realmente que o excesso, de maneira geral, desviava a minha atenção, além de dar trabalho e tomar meu tempo.

Consegui reduzir minhas coisas a, como Thoreau diz em “Walden”, ao que cabe em um único carrinho de mão, e com isso considerava a minha vida mais simples.

Eu fui aquela pessoa que tinha duas calças jeans e alguns pares de camisetas para facilitar o vestir no dia a dia (ainda existe esse “mindset” associando o ato a pessoas de alta performance ou bem-sucedidas).

Aprendi a meditar. Meditava horas. Lia muito. Cheguei a ler um livro por dia, na época.

De maneira alguma tenho a pretensão de dizer que a minha experiência se aplica a todo mundo e que as conclusões a que cheguei posteriormente a ela seriam iguais para outras pessoas. É um blog pessoal, certo?

Mas, para mim, quando você entra em um processo de minimalismo, é grande o risco de jogar o bebê com a água fora. É um erro de processo, mas esse erro não tem como ser evitado, porque para saber as coisas que realmente se quer, muitas vezes precisará ficar sem elas.

Hoje, após mais de 10 anos pós esse período, eu acredito que tenha mantido a mesma mentalidade da busca pelo essencial, e que o destralhe faz parte do dia a dia, mas entendo que muitas vezes eu não estou em condições de decidir o que é ou não essencial. Por isso nunca defendo que você destralhe sua casa toda de uma vez, por exemplo.

Além disso, vi, na época, o processo do minimalismo como uma necessidade individual. Eu estava no retorno de Saturno (para quem acredita), em meio a uma grande crise existencial. Não queria mais trabalhar com publicidade, por ser um mercado de trabalho extenuante. Morava com a minha avó, que era acumuladora. Eu queria mais me libertar das amarras da minha própria vida que qualquer outro propósito.

Então, me desfazer de 90% das minhas coisas porque imaginava que moraria em outro lugar ou aceitaria o emprego de caseira em um sítio (sim, eu procurei na época, e descobri que só aceitam casais ou, principalmente, um “homem forte e armado”), foi algo que simplesmente precisei fazer. E foi um exercício necessário para eu me encontrar.

Ter passado por alguns anos nesse estado minimalista bastante radical me ensinou diversas lições. Ter trabalhado, pesquisado e escrito sobre organização e produtividade também. Meu mestrado me ensinou a desenvolver uma visão mais crítica sobre tudo. E é todo esse pacote que faz a Thais chegar aqui hoje e escrever sobre percepções que tenho para além do minimalismo. Lembrando, como sempre, que este é um blog pessoal, com meu ponto de vista pessoal.

Hoje eu vejo o minimalismo como um fenômeno do século XXI. Ele pode ter efetivamente nascido antes, e até ter (nas artes) uma origem anterior. Mas ele é uma reação essencialmente contemporânea, nascida nos Estados Unidos, e reflete mais uma das crises do modelo capitalista.

Infelizmente, esse berço trouxe algumas características que também refletem eventos que precisam ser problematizados. O privilégio branco, heteronormativo, acima de tudo com a possibilidade de escolha. A sutil porém sempre presente abordagem de que mulheres têm mais dificuldades com o minimalismo porque “gostam de comprar roupas e sapatos”. A possibilidade de você displicentemente poder esquecer seu Kindle em um auditório. O discurso padrão de preferir ter menos coisas, menos amarras, para poder viajar e ter mais experiências. Apesar de não ser supostamente a intenção, o discurso do minimalismo se coloca como elitista. A própria crítica que vem a ele nasce de comentários como “pobre já é minimalista de nascença” – ou seja, o conflito de classes existe, e esse ponto é importante de ser reparado, sempre.

Aqui de boas com minha mala de viagem minimalista observando o avião consumir combustíveis fósseis não renováveis

Mas o que é, afinal, o minimalismo? O minimalismo é um princípio de vida que delineia, para todas as suas escolhas (não apenas referente a casa, dinheiro, tempo, sapatos e objetos), você focar no mínimo essencial. De certa maneira, o minimalismo tem muito a ver com o processo de organização, no sentido de buscar a praticidade das coisas. Mas não se trata apenas de elementos físicos e palpáveis mas a um modo de pensar voltado ao mínimo essencial mesmo. Justamente por isso, ele supostamente tem um viés individual. Trata-se de como você, pessoa, lida com tudo em sua vida buscando focar apenas no mínimo necessário. Isso pode ou não impactar no coletivo. Não é o foco, apesar de algumas pessoas que se dizem minimalistas terem isso como propósito também.

Por mais que eu tenha muitas ressalvas sobre a abordagem dos The Minimalists, gosto particularmente de uma frase que o Joshua usa no documentário, dizendo que cada item na casa dele está ali por um propósito. A revista na mesa, a cadeira na sala, a pasta executiva preferida.

Apesar de o minimalismo beber de muitas fontes que inspiraram esse movimento no passado, precisamos tomar cuidado para não fazer a associação inversa, como se elementos do passado também fossem minimalistas. Isso seria anacronismo. As ideias encontradas no minimalismo bebem nos Vedas, no Budismo, no Zen, no taoísmo, na meditação transcendental, nos estóicos, no bem-viver das aldeias, até mesmo em Thoreau, mas isso não significa, nem de longe, que Thoreau era minimalista, que Sêneca era minimalista ou que Buda era minimalista. Porque o minimalismo é uma reação histórica contemporânea a uma crise do capitalismo.

Aqui vou arriscar uma hipótese, relembrando que é apenas uma visão pessoal e não a verdade absoluta. Mas, para mim, o problema do minimalismo na verdade são dois:

  1. O tom elitista (a pessoa que pode ter coisas e experiências para poder escolher como fazer uso delas é sim um privilégio pautado por uma divisão de classes);
  2. O tom individualista (apesar de muitos minimalistas terem a consciência ambiental e coletiva de suas ações e, por vezes, tornam-se minimalistas também por conta disso, essa não é uma regra dentro do movimento).

Uma das grandes inspirações do movimento minimalista é o movimento de simplicidade voluntária, mas os adeptos da simplicidade voluntária não necessariamente são minimalistas. Logo, não são sinônimos. Eu posso ter uma casa no interior, plantar minha comida, ter painéis solares para energia sustentável e ainda assim ter mil livros e deitar exausta/o na cama antes das 21h porque passei o dia cuidando da terra, dos animais, da vida no geral. Um minimalista pode querer ter uma prensa francesa para fazer seu café, ou a melhor máquina de espresso / expresso que que ele puder comprar. E aí talvez a gente chegue em um ponto essencial da conversa: se depende de energia, depende do capitalismo. E, se depende do capitalismo, não é uma proposta de viver nova.

“Em uma toca no chão vivia um hobbit”

Não é sustentável comprar um celular novo com mais recursos e descartar o celular antigo. Não é sustentável ter um desodorante com alumínio. Você pode ter apenas um desodorante e ser minimalista bagarai. Mas não é vida simples. Não é bem-viver. Não é sustentabilidade. Reduzir o consumo é o “centrão” do modo de vida sustentável. O bem-viver é um rompimento total para termos uma proposta de mundo mais igualitária. Mas o que é o bem-viver?

“O bem viver é, essencialmente, um processo proveniente da matriz comunitária de povos que vivem em harmonia com a Natureza” (Alberto Acosta). Aliás, se quiser ter como referência, em breve farei uma resenha desse livro por aqui (“O bem viver – uma oportunidade para imaginar novos mundos”, Ed. Elefante). Não se trata de “bem-estar ocidental”, que envolve viver dentro do capitalismo de uma maneira mais amena. Trata-se de resgatar completamente um modo de viver que remonta a civilizações e modelos mais simples. Não é “regredir”, ok? Pelo contrário, é construir um futuro sustentável. Repensar e aprofundar o modelo de democracia. Uma sustentabilidade sustentada na solidariedade. O ser humano não como elemento separado da natureza, mas parte dela (como é congruente a visão dentro do Ayurveda também). Por enquanto, vivemos em um esquema completamente antropocêntrico de organização produtiva, com o próprio produtivismo causando a destruição do planeta, regido pela acumulação do capital.

Se você usa elementos pontuais para o seu bem-estar – por exemplo, aprender meditação para lidar com sua própria ansiedade individual, ou entra no minimalismo para repensar a sua prática de consumo – tudo isso é muito, muito melhor do que estar no nível de uma pessoa que nem o lixo de casa busca reciclar, não repensa o consumo ou estoura com todo mundo porque não aprendeu como controlar sua raiva instintiva. Mas isso é um band-aid no machucado principal: um sistema que causa o esgotamento dos recursos naturais e muita pobreza em todo o mundo, além de outras mazelas. Pode estar tudo bem na sala do seu apartamento enquanto você pratica yoga e observa a chuva lá fora, mas enquanto não houver uma discussão sobre modelos de ruptura que superem a metáfora do desenvolvimento, que construam um futuro emancipador, estabelecendo democraticamente sociedades sustentáveis, é apenas uma pessoa dentro de um apartamento com sua consciência tranquila porque a vida dela está ok. Logo, é sobre privilégios e consciência de classe.

Partindo de uma percepção individual, exteriorizar essa decisão como princípio de vida, buscando um estilo sustentável de viver que englobe todos os seres – e os seres humanos dentro da natureza, sem separação, porque de fato não há – e lute efetivamente por essa mudança, aí sim estaremos agindo coletivamente e efetivamente. Se uma pessoa se torna minimalista a princípio para lidar com suas questões internas, e então ela parte para o coletivo, isso é excelente. Mas dificilmente essa pauta é centralizada porque o foco no indivíduo, na performance, na flexibilidade (“não tenha coisas, viva experiências, use seu dinheiro para viajar!”) ainda sustenta um mesmo modelo. Você pode ter a consciência tranquila por não estar consumindo coisas mas, se para viajar você usa um avião, por exemplo, ele foi construído com “coisas”. Alimenta uma cadeia produtiva. Você está consumindo mais do que se ficasse em casa lendo seus livros. E cuja passagem pode ter sido mais cara que a média mensal que um brasileiro vive hoje para se sustentar, que no caso é de 413 reais. Um modelo cosmético, como bem descreve Duane Elgin em “Simplicidade Voluntária” (que também vou resenhar para o blog). Você pode ter uma malha de cashmere em vez de cinco suéteres de lã, e seria um modelo minimalista pronto para lacrar no feed do Instagram. Ou pode “viver de experiências”, que normalmente é traduzido como viagens (que envolve também uma pancada de privilégios). Mas, ainda assim, como diz o Duane, “sem precisar fazer mudanças fundamentais em nosso estado de viver e trabalhar, (…) permitindo que continuemos no mesmo caminho de progresso por décadas ou mais”. Ou seja, sem causar mudanças efetivas e muito necessárias que nosso planeta precisa.

O clima do mundo está mudando. O consumo de energia está devastando o planeta. O extrativismo também. A agroeconomia. A escassez da água. O fato de não termos a sustentabilidade como regra para escolhas diárias. A divisão de classes, o heteronormativismo, o privilégio branco, o patriarcado, a fome, a miséria. A precarização do trabalho. A despolitização. As grandes redes de empresas. O fast-food. O capitalismo financeiro. A extinção dos animais. O consumo desenfreado de carne. A disseminação de vírus. Se o seu minimalismo não corta na jugular as questões acima, ele não é uma filosofia com foco na simplicidade voluntária e no bem-viver. É apenas uma mudança cosmética dentro do sistema capitalista. Pode te deixar com a consciência mais tranquila e “focado” no que é importante para você, mas o quanto isso te aliena do que é importante para todo o mundo? O minimalismo está mais próximo da cultura do “dolce far niente”, do hedonismo, que da ruptura sistêmica que traria mudanças efetivas.

Reforçando: não estou dizendo que toda pessoa que se considere minimalista ignora essas questões. Quero dizer que tais questões, urgentes, e cernes de movimentos como o da simplicidade voluntária ou do bem-viver, não são o cerne do minimalismo, pois o cerne do mesmo é a pauta individual, com o impacto coletivo como consequência ou segundo plano, a não ser que o próprio indivíduo leve essa problematização adiante.

Mais uma vez: minha experiência pessoal somada às pesquisas que tenho feito nos últimos 14 anos, especialmente aprofundadas nos anos do meu mestrado. Como falei no início do texto, minha jornada de início do minimalismo foi importante, fruto de uma inquietude interior. Mas foi fundamental olhar para fora para compreender que, como parte do mundo, não basta ter compaixão apenas comigo mesma, mas com todos.

E se por acaso você chegou aqui procurando sobre minimalismo, está a fim de conhecer mais o movimento, parabéns! O minimalismo é um passo importante e que já vai trazer muitos ganhos para você e também para o planeta. Mas meu convite é para ir além, em busca de um mundo comum.