Minha relação com as viagens

Eu tenho uma memória muito vívida da minha infância, de quando eu tinha por volta dos oito ou nove anos de idade.

Estava sentada na escada da minha casa, no quintal, olhando para o céu. Quando meus pais não estavam em casa, eu gostava de colocar um disco na vitrola no último volume e ficar ouvindo no quintal, pensando na vida.

Meus pais tinham um disco de música clássica que eu adorava ouvir. As músicas eram intensas. Eu viajava ouvindo “As quatro estações”. Criava roteiros na minha cabeça, dançava sozinha e imaginava cenários para a vida.

E aí eu me lembro desse dia. Eu estava sentada, olhando para o céu, e pensando em todas as possibilidades que existiam no universo.

Naquele momento, eu não pensava em viajar. Aquilo não fazia parte da minha realidade. Quer dizer, meus pais viajavam para a praia de vez em quando. Mas nunca existiu essa ideia de viajar para outro país. Mesmo outra cidade parecia muito distante.

Alguns anos depois, a minha avó fez uma viagem para a Itália com uma excursão. Era um sonho da vida dela, e ela falou sobre essa viagem pelo resto da vida. Isso me inspirou muito. Tanto que, quando “cresci”, eu comecei a alimentar esse sonho de viver lá. Queria terminar a faculdade e tentar a vida na Europa. Eu achei que isso era um sonho em conjunto, mas não era. Quando essa fria realidade caiu sobre a minha cabeça, eu fiquei muito mal – apesar de não compreender a dimensão disso na época. Foi apenas um plano frustrado que me fez terminar meu relacionamento, e me parecia apenas isso – não deu certo, e pronto.

Depois, eu retomei esse relacionamento, pois amava muito o meu ex-marido. Para mim, o que importava era ficar com ele. Fomos felizes, Tivemos um filho juntos. Mas enterrar os próprios sonhos tem um preço que, muitas vezes, a gente não consegue compreender a não ser quando os anos passam e você percebe que a vida vai acabar e você não fez algo que era tão importante para você.

Antes de o Paul nascer, eu gostava de fazer trilhas e acampar – o chamado hiking. Depois que ele nasceu, não fiz mais isso. Vendi minha barraca e equipamentos.

Meu ex-marido não gostava de viajar. Todo feriado ou férias eu queria viajar, conhecer lugares, descobrir coisas. Então a gente tinha isso, e acabou pesando com o passar dos anos.

Em 2011, comecei a trabalhar em um lugar que demandava viajar muito. Foi quando fiz a minha primeira viagem internacional – para os Estados Unidos, para uma certificação. Aquilo desbloqueou algo em mim: a vontade de viajar novamente. De lá para cá, ouso dizer que essa vontade nunca mais foi embora. Viver na Europa era outro sonho. Tem a ver com segurança, claro, mas também com o estilo de vida que eu queria viver. Mais silêncio, um dia a dia com mais qualidade de vida, arte, história. E veja: eu sempre tentei levar isso para o meu dia a dia, mesmo vivendo em São Paulo. Mas a questão da segurança sempre me pegou muito, especialmente depois que nosso filho nasceu. Nós já passamos pelas seguintes situações nos últimos 14 anos (idade dele):

  • assalto à mão armada com ele no carro
  • invasão da nossa casa
  • um sequestro relâmpago (eu)
  • furto de celular (várias vezes)
  • tiroteio no trânsito

Sabe? Qual o limite disso?

Ler é um dos meus refúgios

Entre 2015 e 2016, com o golpe se articulando no cenário político brasileiro, eu já estava pensando em mudar. Desenhei todo o planejamento estratégico para abrir a franquia do método GTD em Portugal. Fiz reuniões com a matriz, tudo certinho. Estava no processo de abertura da empresa no país quando meu ex-marido foi enfático: não vou sair do Brasil. Eu arquivei meu sonho novamente, mas analisando hoje eu vejo que aquilo foi a última pedra do buraco. Chegamos a conversar sobre separação na época, e acho que nunca mais fomos os mesmos depois disso. Nos separamos alguns anos depois.

No ano passado, eu tive a oportunidade de fazer um intercâmbio pelo doutorado na Europa. Vim para a Alemanha. Aí fui convidada para esse projeto na Universidade de Varsóvia. Fui para a Polônia. Ainda não finalizei o projeto, mas será este ano. Fui convidada para palestrar em dois eventos internacionais – um na Holanda e outro na Dinamarca. Cheguei a ministrar um curso em Portugal. Empresas européias têm entrado em contato interessadas no conceito de Produtividade Compassiva. As coisas foram se desenhando.

Foto: Henrique Pimentel

Quando surgiu a oportunidade do intercâmbio, o que me permitiu fazê-lo foi ter a segurança de que o Paul estava mais velho e independente e em segurança com o pai dele, que sempre teve como prioridade a paternagem. A saudade dói? Dói demais, mas me doeria ainda mais trazer o Paul e afastá-lo do pai, da família, dos amigos. Eu não sou egoísta. Me doei inteiramente para os outros a minha vida inteira. Esperei meu filho crescer para poder fazer algo por mim, e é o que eu estou fazendo.

Tudo isso também é sobre o futuro dele. Proporcionar possibilidades e oportunidades, caso o Paul queira viver o que eu não vivi. E, acima de tudo, segurança. Eu amo o Brasil, de verdade. Tenho uma empresa no país, acredito no trabalho, nas pessoas. No final das contas, minha ideia é mais sobre aquela música dos Titãs – “Lugar nenhum” – e a do Paul McCartney – “Here, There and Everywhere”. Um paradoxo de existência que não tem certo ou errado, melhor ou pior, bônus sem ônus, mas que é simplesmente a vida que estou vivendo hoje. Não “me mudei” para a Europa. Moro no Brasil. Neste exato momento, estou em um projeto profissional fora do país, mas logo volto. Foi a maneira meio-termo que encontrei de conciliar as coisas.

Durante muitos anos, enquanto não pude viajar, eu viajei de outra maneira – com os meus livros. Não é à toa que eu leio tanto. Ler é viajar para outro lugar. E, na impossibilidade de ir fisicamente, fui muitas vezes mensalmente. Talvez seja algo a se considerar, se você se identificou com este post.

Viajar pode ser bem solitário às vezes. É o que mais pega para mim quando estou viajando. Mergulhar no trabalho e conversar com as pessoas que eu amo pelo celular me ajuda a diminuir a saudade e a me sentir mais querida. Todo esse estilo de vida me permitiu valorizar mais também quem realmente gosta de mim e quer me ver bem. A viagem é do lado de fora mas a mudança acontece internamente o tempo todo também. É como se os horizontes se elevassem de tal maneira que você só consegue enxergar o que é verdadeiramente essencial, de maneira mais ampla, como se estivesse indo para o céu realmente. Muitas vezes, vai. 😉

Há alguns meses eu tive a oportunidade de viajar de noite em um trem-leito de Amsterdam até Berlin. Optei por uma cabine exclusivamente feminina, pela segurança. Junto comigo na cabine, mais duas mulheres completamente estranhas, que eu nunca tinha visto na vida, um pouco mais velhas do que eu (talvez com 50 ou 60 anos). Ambas com mochilas nas costas, rugas de sol no rosto, o cabelo bagunçado, tênis e calça jeans. De onde estavam vindo? Para onde iriam? Do que vivem? Como são as suas vidas? Do que abriram mão para estar ali? E o que ganharam com isso? Eu não sei responder. Ainda procuro responder essas mesmas perguntas sobre mim mesma. Mas ali, naquela cabine, no silêncio da noite, eu me senti pertencente a esse seleto grupo de mulheres que têm a liberdade de fazer o que querem, ir onde quiserem, e que tudo tem um preço. Não ignoro o privilégio. Me aproveito dele.

Nós viajamos em silêncio. Trocamos poucas palavras durante todo o trajeto – aquelas suficientes para pedir desculpas, por favor, ajuda com a escada (minha cama era em cima). Um sorriso esboçado no rosto ao entrar ou sair da cabine de vez em quando. Essas coisas. Uma cumplicidade construída unicamente pelas circunstâncias do momento. Não sabíamos quem éramos, nem o nome uma da outra. Apenas estávamos ali, juntas por um breve período de tempo, indo de um lugar ao outro, com sonhos e objetivos particulares, mas que nos uniam sob um único propósito: viajar. E isso me tocou profundamente, para o resto da vida. Como poderia ser diferente?

Sobre a autora

Thais Godinho

Autora do Método Vida Organizada, criou este blog em 2006.

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11 Comments

  1. Belo texto, Thais. Tenho refletido muito sobre as possibilidades para mulheres que passaram dos 35 anos como eu. No meu caso não tenho marido ou filhos, e vejo que há sim muita vida para além disso. Foi a Rita Lee quem disse que algumas mulheres envelhecem para se tornar feiticeiras, é isso que desejo pra você e quem sabe para mim também!

  2. Belo texto e muito inspirador!
    Espero que faça algum evento presencial na Europa, em Espanha ou Portugal. Seria muito bom!

  3. Obrigada por dividir com a gente suas reflexões sobre o tema. Muito sensível o post! ??

  4. Ai, Thais. Adoro as suas reflexões. Me fazem me sentir mais humana, menos sozinha, mais “normal”.

  5. Thais, que post maravilhoso. Uma das coisas que eu e meu marido mais compartilhamos nessa vida em comum é o gosto por viagens: já fizemos tantas juntos e ainda há muito por vir em nossas próximas fases. Agora temos um filhinho pequeno e os passeios são adaptados a essa realidade. Fico feliz por estar finalmente realizando seus projetos. Abraços

  6. Que texto maravilhoso!

  7. Thais, de todas as redes que você posta, o blog é o que eu mais amo acompanhar (leio há muitos anos). Parece que aqui suas reflexões são mais autenticas e inspiradoras. Te admiro muito!

  8. Que texto, Thais! Estou passando por um momento bem parecido e me identifiquei com cada palavra. Obrigada por transformar sentimentos em palavras e compartilhar conosco.

  9. Que reflexão linda, Thaís… Obrigada por trazer um tema com sensibilidade e abertura para nos inspirar. Sua vida é preciosa aqui na Terra e tenho noção do privilégio que é estar encarnada ao mesmo tempo que você. Que os caminhos se abram cada vez mais e você alcance sua felicidade nas pequenas coisas. Abraço forte

  10. Thaís.

    Li este post ontem e fui profundamente impactada.
    Estou digerindo, refletindo, relendo e sendo tocada por suas palavras.
    Então, obrigada por se abrir.

  11. Que texto bacana! Me peguei refletindo junto com a partilha desses detalhes tão valiosos da sua intimidade, Thais. E embora não tenha falado, imagino que a escrita também faça parte desse seu processo de autoconhecimento.

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