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Reflexões sobre espiritualidade e organização

Eu quis abordar o tema “espiritualidade” no Vida Organizada durante o mês de junho e, como o blog já tem bastante conteúdo a respeito, foquei mais na produção de vídeos para o canal respondendo as dúvidas enviadas por aqui, nos comentários de outros vídeos e no Instagram. Foram muitas perguntas (obrigada!) e, por isso, ainda não terminei de responder todas. Estou respondendo aos pouquinhos. 🙂 Mas acho que é válido trazer uma reflexão mais geral para o blog, então por isso esse post de hoje.

Eu fico pensando bastante nessa relação que existe entre organização e espiritualidade. Quem acompanha o blog há algum tempo já deve ter me visto falando sobre qual é a minha visão de uma vida organizada – não se trata de colocar as coisas em caixinhas, mas de levar uma vida coerente com os nossos próprios valores, de modo que nossas atividades sejam artesanalmente moldadas, diariamente, em direção a um estilo de vida que nós queremos viver.

Com base nisso, a espiritualidade, que é apenas uma das diversas áreas da nossa vida, entra nessa roda como parte do todo e, como todas as outras áreas, é muito importante e deve ser coerente com quem nós somos.

Imagem: No dia a dia

Sou uma pessoa muito ligada à ideia de espiritualidade e já transitei por diversas religiões. Acho que as religiões são simplesmente caminhos diferentes, formatos. Obviamente não existe certo ou errado, mas aquele que combina mais com quem nós somos. Quando estamos alinhados – e isso pode significar não pertencer a religião nenhuma ou até em não acreditar em deus! – sentimos essa sensação de completude, que nada mais é do que a consciência tranquila de que a coerência está presente.

Como em outras áreas da vida, me sinto confortável para efetuar mudanças, se sentir essa necessidade interna. Hoje, ainda me considero budista. Já fui muito mais “praticante”, no sentido de frequentar as atividades do centro, dar aulas de meditação, fazer cursos e participar de retiros. Hoje, exerço mais na minha prática diária o caminho do bodisatva.

O “caminho do bodisatva” trata-se de buscar ser, no dia a dia, uma pessoa com disciplina moral de acordo com os preceitos budistas e que desenvolve uma mente de compaixão para ajudar outros seres vivos a superarem o sofrimento e alcançarem a iluminação. Algumas pessoas me pediram para falar sobre isso, então tentarei dar uma explicação breve.

Um bodisatva vive “evitando quedas”. “Quedas” são atitudes que “quebram” o propósito acima. Existem as quedas raízes (mais “fortes”, digamos assim) e as quedas secundárias (menos graves).

Quedas raízes

  1. Louvar a si mesmo e desprezar os outros, criticar com o objetivo de ferir
  2. Recusar ensinar alguém sobre o darma (ensinamentos de Buda) se essa pessoa pedir
  3. Não aceitar pedidos de desculpas, alimentando rancor
  4. Abandonar o mahayana (caminho budista)
  5. Roubar patrimônio das três jóias (oferendas)
  6. Abandonar o darma
  7. Tomar as vestes cor de açafrão (destinadas a monges e monjas ordenados)
  8. Cometer quaisquer das cinco a̵̤es hediondas (matar o pai, matar a ṃe, matar um destruidor de inimigos, ferir maldosamente um buda e causar ciṣo na sanga Рa comunidade de praticantes)
  9. Esposar visões errôneas sobre ensinamentos budistas
  10. Destruir lugares, como cidades e moradias
  11. Explicar a vacuidade para quem pode entender mal (é um ensinamento budista avançado)
  12. Levar outras pessoas a abandonarem o mahayana
  13. Levar outras pessoas a abandonarem o pratimoksha (prática específica)
  14. Depreciar o hinayana (caminho budista)
  15. Falar falsamente sobre a vacuidade profunda (ensinamento budista avançado)
  16. Aceitar patrimônio que tenha sido roubado das três jóias (oferendas)
  17. Estipular más regras (ex: vender produtos é mais importante que a prática de meditação)
  18. Desistir da bodichita (mente de compaixão)

Quedas secundárias

  1. Não fazer oferendas diárias às três jóias (é uma prática diária básica de votos)
  2. Entregar-se a prazeres humanos por apego
  3. Desrespeitar aqueles que receberam um voto bodisatva antes de nós
  4. Não responder quando alguém se dirigir a você
  5. Não aceitar convites
  6. Não aceitar presentes
  7. Não dar darma àqueles que o desejam
  8. Abandonar aqueles que quebraram sua disciplina moral
  9. Não agir de maneira que inspire fé
  10. Fazer pouco para beneficiar os outros
  11. Não acreditar que a compaixão dos bodisatvas garanta a pureza de todas as suas ações
  12. Fazer fortuna ou fama adotando um modo de vida impróprio
  13. Entregar-se a frivolidades
  14. Afirmar que os bodisatvas não precisam abandonar o samsara
  15. Não evitar má reputação
  16. Não ajudar os outros a evitar negativatidade
  17. Retaliar maus-tratos ou abusos
  18. Não pedir desculpas quando houver oportunidade
  19. Não aceitar pedidos de desculpas
  20. Não aplicar esforço para controlar a própria raiva
  21. Reunir um círculo de seguidores visando lucro ou respeito
  22. Não tentar vencer a preguiça
  23. Entregar-se a conversas sem sentido por apego
  24. Não fazer o treino em estabilização mental
  25. Não superar obstáculos à estabilização mental
  26. Ficar entretido com o sabor da estabilização mental
  27. Abandonar o hinayana
  28. Estudar o hinayana em detrimento da nossa prática mahayana
  29. Estudar assuntos de não-darma sem um bom motivo
  30. Ficar absorto em assuntos de não-darma
  31. Criticar outras tradições mahayana
  32. Louvar a si mesmo e desprezar os outros
  33. Não aplicar o esforço de estudar o darma
  34. Preferir confiar em livros a confiar no Guia Espiritual
  35. Não dar assistência aos necessitados
  36. Não cuidar dos doentes
  37. Não agir para afastar o sofrimento
  38. Não ajudar os outros a superarem os seus maus hábitos
  39. Não retribuir a ajuda daqueles que nos beneficiam
  40. Não aliviar a dor dos outros
  41. Não dar aos que pedem caridade
  42. Não dispensar cuidados especiais aos discípulos
  43. Não agir de acordo com as inclinações dos outros
  44. Não elogiar as boas qualidades dos outros
  45. Não realizar ações iradas no momento oportuno
  46. Não usar poderes milagrosos, ações ameaçadoras etc.

Todos esses votos podem ser encontrados no livro “O voto do Bodisatva” (Geshe Kelsang Gyatso). Cada um dos itens acima pode ser destrinchado mas, para o post não ficar longo, apenas listei. Caso tenha dúvidas, favor deixar um comentário.

Como ninguém é perfeito, é comum (mas deve ser cada vez menos comum, essa é a ideia) cair em tais quedas. Por isso existem diversas práticas de purificação, que fazem parte do dia a dia budista.

Como eu comentei em outros posts e vídeos, tenho uma checklist com essas quedas, que reviso diariamente.

Inclusive, se você ainda não assistiu, seguem os vídeos já publicados sobre espiritualidade este mês no canal:

Obrigada por estar aqui.

Autor

9 comentários em “Reflexões sobre espiritualidade e organização”

  1. Thaís, boa tarde! Adorei o post, gostei bastante de saber sobre as práticas budistas. Sou espírita, mas muita coisa que tem nesses mandamentos a filosofia espírita recomenda também… Muitas coisas em comum sobre como ser a melhorar versão de nós mesmos… Acho que no fim esse acaba sendo o propósito para mim!

    Não entendi muito bem o número 26

    “Ficar entretido com o sabor da estabilização mental”

    O que isso quer dizer?

  2. Thaís, boa tarde.
    Eu fui criada como espírita. Ainda me considero espírita, mas tenho questionado alguns posicionamentos da doutrina, e me afastado um pouco… Tenho muita curiosidade sobre o budismo, sobre coisas bem básicas mesmo, mas na realidade, nem sei onde conseguir tais respostas…
    Já que você abriu um “canal” para perguntas, gostaria de saber…
    1) Os diferentes tipos de budismos são tão diferentes entre si quanto os diferentes tipos de cristianismo (por exemplo, espiritismo e evangélicos são totalmente diferentes)? São considerados cada um uma religião, ou são apenas “linhas” diferentes dentro de uma única religião, budista?
    2) O que “une” os diferentes “tipos” de budismo? Alguma crença básica comum?
    3) Quais são as crenças básicas? Acreditam em Deus? Como ele é? Acreditam em reencarnação? O que acreditam a respeito dos animais, e qual a principal diferença entre humanos e as outras espécies de animais?
    4) O que acontece depois que morremos? Continuamos sendo indivíduos conscientes, ou passamos a fazer parte de um todo? Existe um julgamento? Existe um céu e um inferno? Nos reencontramos com amigos que morreram antes de nós?

    Obrigada!! 🙂

    1. Oi Anne, tudo bem?

      1 РṢo consideradas linhas diferentes dentro do Budismo.

      2 РA cren̤a na ilumina̤̣o como caminho.

      3 – Esse tópico é extenso! Indo pontualmente nas suas perguntas: Acreditam em Deus? Não. Como ele é? Existe a figura do Buda, que representa um estado de iluminação, e existiram diversos Budas na história da humanidade. Acreditam em reencarnação? Sim, até você alcançar a iluminação, quando sai desse ciclo de reencarnações. Animais x Humanos: são todos seres vivos, mas nascer como ser humano é uma dádiva, pois te dá autonomia para fazer as coisas – inclusive cuidar dos animais. 😉

      4 – Existe um conceito chamado roda da vida que mostra os diferentes estágios. O modo como você reencarna depende do seu carma – resultado das suas ações.

      Espero ter ajudado.

  3. Ah, e adicionando mais uma pergunta às anteriores…
    O que o budismo prega a respeito das diferenças entre homens e mulheres? Existem papéis definidos esperados correspondentes a cada um dos sexos (como uma.mulher deve ser x como um homem deve ser)? E sobre sexualidade, o que o budismo prega? É pecado dispor de sua sexualidade de maneira livre? Existe a obrigatoriedade (ou pelo menos uma “aprovação divina” em se casar virgem? Para homens e mulheres igualmente? E sobre aborto, o que o budismo prega sobre isso? É escolha da mulher, ou é “pecado”? E homossexualismo?

    Obrigada!

    1. É importante colocar toda e qualquer religião dentro do seu contexto histórico.

      Vivemos em um mundo patriarcal, então por isso é comum que o budismo tenha algumas práticas tradicionais que sejam mais focadas em homens.

      Hoje em dia, no entanto, isso vem mudando bastante. Há muitas monjas ordenadas.

      Não há regras de distinção de gênero, tipo homem pode isso e mulher não pode. Pelo menos na minha tradição. Não tenho conhecimento de outras.

      Sobre sexualidade, existem alguns princípios de boa conduta, tipo “não praticar mea conduta sexual”, que significa trair, fazer sexo por fazer, e outras assim. Mas existe todo um caminho voltado para o tantra, que aborda aspectos de sexualidade, mas não sei entrar em detalhes porque não fui iniciada nesse caminho.

      Não há “regras” de modo geral, mas recomendações de boa conduta como ser humano mesmo, com foco em ajudar os outros, e isso inclui todas as áreas da vida, inclusive a sexual.

  4. Vixi, raramente aceito convites😂😂. Não gosto de festinhas, confraternizações. Mas não me sinto mal por isso. Nem Buda explica😂

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