No Brasil, simplicidade está bastante em voga: 56 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza. Mas, além dessa simplicidade compulsória, há a simplicidade por opção, a daqueles que têm acesso a tudo – poderiam até possuir mais -, e que abrem mão de distrações triviais para focar no essencial. í‰ uma tendência crescente em todo o mundo. Gente que cresceu usufruindo da sociedade abastada, estressada e consumista e agora está descobrindo que o dinheiro não compra a tal da felicidade.
A simplicidade voluntária, vale dizer, não é um sacrifício. Ao contrário, ela traz satisfação profunda e estimula novas formas de relacionamento com a família, os amigos, a comunidade, com o trabalho e, de resto, com todo o universo (parece exagero, mas você já entenderá por quê). O conceito não é novo e, pesquisando seus fundamentos, encontrei as reflexões do historiador e cientista social americano Duane Elgin (seu primeiro livro, de 1981, chama-se mesmo Simplicidade Voluntária). Elgin diz que vida simples é fruto de um propósito que a gente tem, pelo qual fica mais fácil descartar excessos, direcionar a energia de modo ordenado, ser mais coerente, sincero, consciente. “A simplicidade começa dentro da gente quando decidimos o que realmente importa para cada um de nós. Simplicidade voluntária quer dizer escolher o nosso caminho na vida de forma consciente, deliberada e de nosso próprio acordo. Não é apenas viver com menos, mas viver com propósito e equilíbrio.”
Em princípio, portanto, é uma atitude individual – por exemplo, experimentar o prazer de andar a pé e cuidar do jardim, em vez de ir de carro até o shopping. Mas, se tomada coletivamente, a simplicidade voluntária é um contrapeso í s forças globais que estão promovendo a extinção de espécies, a exaustão dos recursos naturais, as alterações climáticas, o crescimento populacional e as diferenças entre ricos e pobres – você sabe, essas coisas estão correlacionadas. O planeta tem seus limites, nós também, e se não agirmos de acordo nas decisões do dia-a-dia, comprometeremos nosso futuro, ou o de nossos filhos e netos.
Sempre gostei de observar tendências – é coisa de família: cresci cercada de jornalistas. Quando morava nos Estados Unidos, percebi as pessoas mudando em busca da simplicidade. Em 1991, a revista Time trouxe na capa uma reportagem sobre gente que estava largando tudo, inclusive posições de sucesso, para passar mais tempo com a família e os amigos, dedicando-se ao lazer e também ao autoconhecimento e í espiritualidade. Na mesma época, o cinema já dava algumas pistas. Hook, a Volta do Capitão Gancho mostrava Robin Williams como um Peter Pan em cargo de executivo, obrigado a mudar radicalmente para se reintegrar í família. Em Uma Segunda Chance, com Harrison Ford, um advogado insensível, baleado em assalto, era forçado a se transformar. Nas livrarias, apareceram obras e obras tratando de trabalho interior, religiões do Oriente e outros temas que nem de longe lembravam a ambição, o excesso e o materialismo dos anos 80.
Enquanto escrevo aqui, a agenda eletrí´nica quebrada me lembra como é difícil a opção pelo simples. Era uma agenda antiquada, sem conexão para o computador. Bastou uma gota d’água para a memória tornar-se éter. Em geral, tento evitar excessos, reciclar, ter consciência ao comprar, mas claro que me rendi a um modelo mais avançado, com recursos que antes não imaginava necessários. O fato é que numa cidade grande, com gente por todo lado, corporações gigantes, carro, shopping, as exigências da família, tudo colabora para ficarmos absorvidos pela confusão, e isso pode nos afastar da simplicidade. Sem falar nas complicações do país e do mundo, em tempo real, através da internet, da TV e até do celular.
Alguns dos personagens da tal reportagem de capa da Time, que, no começo dos anos 90, estavam dando a virada da vida simples, reapareceram na mesma revista recentemente, contando como tudo terminou em pizza. Por exemplo, a executiva que largara tudo para comprar uma mercearia familiar numa cidadezinha do interior, acabou tocando tão bem o negócio que agora tem um lucrativo serviço de internet, que ajuda donos e administradores de restaurantes a encontrar profissionais qualificados para suprir o setor. Bem, ela voltou í vida de executiva – ao menos mais feliz, garante. Ser simples pode ser complicado.
Quase sempre começa pela desaceleração da marcha da carreira em troca da vida mais modesta e sensata. A paulista Lucianne Ferreira, 30 anos, não apareceu na Time, mas bem que podia. Em junho, ela dispensou um salário de 10 000 reais como executiva de marketing para estudar culinária – um sonho antigo, adiado, abandonado. Trocou os ternos e tailleurs por calça jeans, tênis e um orçamento apertado. “Me sinto mais feminina, sei que passo isso ao meu marido. Fiquei mais pele, sinto ele me tocando com amor.”
em vez de ir de carro até o shopping.
que promovem a exaustão dos recursos naturais.
Eu mesma, há anos busco simplicidade. Ou a vida simples me persegue: um susto qualquer me obrigando a rever valores, cortar excessos, exercitar o desapego. Com você não deve ser diferente. Foi em Nova York, atravessando uma feira de rua, que me reconectei com os frutos da terra, os ciclos da vida e uma forma de ser simples. Ali encontrei alimentos orgí¢nicos, sem vestígios de agrotóxicos, que chegavam direto dos produtores. Mantive o hábito e, de volta ao Rio, continuei a comprar, tanto quanto possível, só o que é natural e saudável. Não por acaso, nas feiras aqui encontro muita gente descolada, cabeça boa, preocupada com a questão ambiental, como Thina Izidoro, 48 anos, e Jan Carvalho, 42 anos. Eles vêm de cidades do interior, foram acostumados no contato com a terra e com as idéias de auto-suficiência, e entendem que comprar alimento orgí¢nico é “biopolítica”. “Nos aproxima do natural, do homem que nutre a terra e contribui para que ele permaneça ali.” Vou muito ao restaurante deles e não só pela comida – os dois me têm servido de modelo para uma vida simples, essa aspiração enigmática. “Viver do orgí¢nico é um privilégio. Não lesamos ninguém, dormimos tranqí¼ilos.” Ninguém precisa deixar de consumir, renegando o progresso, para dormir tranqí¼ilo. Duane Elgin cita a internet – um dos símbolos da civilização moderna – como ferramenta para chegar a uma vida simples: ela distribui informação, democratiza a educação, descomplica tudo. Porque a questão não é renunciar por renunciar, mas ter um propósito. Através dele, cada qual a seu jeito, descobre o que é essencial.
Para a carioca Sílvia Herz, 43 anos, o propósito surgiu ao pí´r os olhos em seu primeiro bebê. Designer de jóias, ela trabalhava em uma grande rede de joalherias mas, depois do parto, preferiu abrir mão da decantada “segurança do emprego” e proclamou independência. Agora, leva e busca os filhos na escola, prepara o jantar, senta com as crianças, supervisiona o dever, conversa, bri
ga, está quase todo o tempo ao lado deles. “Sou mãe comprometida, quero estar junto, educar, observar.” Também do Rio, Deborah Weinberg, 35 anos, largou luxo, marido diplomata, guardou o diploma de mestrado em engenharia genética e se mandou para a Califórnia. Lá, estudou yoga e, então, seguiu para a índia. Enfrentou desafios, teve medos, até chegar í vida tranqí¼ila que tem hoje, pautada em ensino do yoga, trabalho voluntário e uma longa e regrada rotina espiritual: “Passamos a vida juntando coisas para, um dia, deixar tudo. Hoje, quero crescimento interior”.
Encontrei também sinais da consciência espiritual e mudança de foco no universo das empresas. Em várias frentes surgem organizações reunindo gente para repensar o papel das pequenas e das grandes corporações diante do mundo globalizado, poluído, estressado e com tanta riqueza maldistribuída. O mais importante grupo dessa onda é o Spirit in Business. No início do ano, sua conferência em Nova York reuniu empresários de quase todos os continentes, que debateram o papel do trabalho espiritual na transformação das corporações. Analistas encontraram paralelos entre antigas práticas espirituais e as tendências de sobrevivência para empresas, como o cultivo da vida interior, a ação com responsabilidade e a integração simétrica entre os ambientes interno e externo (no Brasil, o Instituto Ethos desenvolve um trabalho parecido).
Marcelo Cardoso, 36 anos, diretor-superintendente do parque Hopi Hari, em Jundiaí, SP, usa a espiritualidade como ferramenta gerencial. “Quase larguei tudo, mas hoje enxergo meu cargo como uma oportunidade de evolução: percebi que as coisas se realizam internamente.” Toda semana ele reúne os funcionários com uma psicóloga para passar sentimentos a limpo. “O trabalho interior é uma alavanca para o crescimento. Pode puxar as empresas para um salto de produtividade.”
Ou seja, está se tornando claro que a idéia de lucro a qualquer custo, atropelando as verdadeiras necessidades das pessoas dentro e fora das empresas, compromete o sonho de um mundo mais honesto, mais justo, mais simples.
A mudança de prioridade de indivíduos e empresas resulta não só das crises ambientais, sociais e econí´micas que nos confrontam, mas também da maior troca de informação entre Oriente e Ocidente no século XX. O saber integrado, preservado na índia, na China, no Tibete e no Japão, desencadeou muitos questionamentos entre nós – porque lá no outro lado do mundo, nos livros mais antigos, tudo faz parte: o cosmo, o vento, a terra, a gente. A percepção de estarmos aninhados neste sistema vivo maior, no qual tudo e todos estão relacionados, é um passo para a vida simples. Duane Elgin chama a essa consciência de “despertar”: mudamos não só a relação com as posses, mas compreendemos nossa interação com o complexo vivo e diní¢mico das forças da natureza.
“Construímos o mundo e, ao mesmo tempo, somos construídos por ele”, disseram os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, autores de A írvore do Conhecimento. Também Fritjof Capra, em O Ponto de Mutação, compara as ciências da civilização européia, marcadas pelo pensamento cartesiano, com a ciência sistêmica do Oriente, que leva em conta todo um organismo (e não só as partes), as interrelações entre os ambientes interno e externo, assim como os ciclos e as flutuações da vida.
Não é exatamente comum usar o I Ching* como fonte numa reportagem, mas foi o que fiz durante a preparação deste texto. Minha pergunta: “Qual o caminho para a vida simples?” Tirei a quinta linha do hexagrama O Criativo: “As coisas que se harmonizam em tom, vibram em conjunto. As coisas que, entre si, têm afinidade em suas essências mais íntimas atraem-se mutuamente… Cada um segue o que lhe corresponde” (I Ching, de Richard Wilhelm, Editora Pensamento).
Essa linha fala da sabedoria de perceber os ciclos do tempo, o que cada momento está pedindo, a releví¢ncia de uma vida compartilhada. Entendo que não dá mais para pensar apenas em interesses materiais e individuais. í‰ preciso olhar o todo, ver-se integrado ao complexo maior.
O publicitário Ricardo Guimarães, 54 anos, sabe há muito sobre os ciclos de tempo, a integração com a natureza e a generosidade. Mas a razão que me levou a procurá-lo foi a notícia de que fecharia a Guimarães Profissionais, sua bem-sucedida agência de propaganda em São Paulo, com receita líquida de 12 milhões de reais, para ficar apenas com o braço menor do negócio, a Thymus Branding, com receita de 2 milhões. Seu foco agora deixa o mais específico e lucrativo processo de comunicação, que é o de suprir as necessidades do cliente através da propaganda, e alarga-se até a criação de produtos e condutas para empresas verdadeiramente comprometidas com transparência e responsabilidade. Ele passa a levar em conta a interação com todo o ambiente. “Quanto mais próximo da essência, mais livre fico das circunstí¢ncias”, explica. “Sinto-me mais leve, criativo, corajoso, produtivo e rápido porque vou direto ao que interessa. Na hora em que vejo onde posso ser útil de maneira mais radical, então dou o passo.” As opções se fundamentam naquele saber integrado, vindo do Oriente. “Pertenço a uma geração que questionou a civilização ocidental”, diz. “Como não tínhamos respostas, fomos buscar, no Oriente, uma escola de pensamento e uma compreensão que acolhesse a vida em sua contradição: na hora de olhar um processo maior, fazemos parte.”
Entre as multidões da internet, encontrei incontáveis endereços sobre simplicidade. Há sites que ensinam sobre a relação com o dinheiro e a organização do dia-a-dia, í luz de diferentes religiões. E vendem livros sobre simplicidade, manuais de simplicidade, vídeos de simplicidade… Sem falar nos sites pessoais, com regras para aplicar a simplicidade na vida, nos sonhos, nas posses, na casa e na rotina, onde se determina até o abandono da TV. Toda essa informação consegue apenas dar continuidade í busca voltada para o exterior e atende ao mundo ilusório das respostas rápidas. Ser simples é simples, difícil é descomplicar.
Digamos que esse texto é essencial! Muito bom!
Obrigado, Thais!
Obrigado pela reprodução do texto.Muito bom.Continue trazendo assuntos como esse,ja sou fã de seu blog e cada vez mais admiradora do seu trabalho.Parabens.
Oi Thais, sou sua fã e admiro seu trabalho. Eu tenho muita dificuldade em achar minha essência…são tantas obrigações diárias com trabalho, famÃlia e com todo o resto que não sei como me dar esse”luxo” de olhar para minhas aspirações. Vou continuar aprendendo com você! bjs
uau… descobri seu blog há poucos dias e to encantada!! PArabens, vc é incrivelmente inteligente, prática, simples e em evolução de uma forma linda!!! Tô amando cada post.. desde os primeiros de anos atrás até os atuais!!
Obrigada!